“Info(eco)activismo: alguns testemunhos de redes de “memes” no Facebook luso-brasileiro”
José Pinheiro Neves (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho)
Texto da comunicação apresentada no II Congresso Internacional de Net-ativismo realizado no Porto nos dias 5 e 6 de novembro de 2015 (Versão Draft).
“Um fulano que ia apresentar um herói romano fez um discurso deste género: “Romanos, vamos receber o nosso herói com uma enorme ovação, o nosso grandioso Marcos!” e toda gente reage “Ahhhhhhh!”. E ele continua, “Porque ele é o nosso herói!” e mais uma grande ovação. Depois dizia assim: “Claro que para conquistar Constantinopla morreram milhares dos nossos romanos”. Aí, toda a gente já faz menos barulho. “E para isso também nos aumentaram os impostos e por isso estamos a não-sei-quê... É o nosso grande Marco!” e as pessoas vão seguindo com um ar diferente do inicial e aquilo vai prosseguindo. No fim, já está toda a gente a dizer: “Matem, matem o Marcos!” Ou seja ele começa devagarinho, devagarinho até terminar o discurso... Eu no Facebook tento fazer isso.” (Entrevista ao Vítor Rua)
Resumo
O presente texto é fruto de uma pesquisa de pós-doutoramento sobre as diferentes formas de “memes”, no Facebook luso-brasileiro, como formas de info(eco)ativismo que não se reduzem a uma lógica referencial de “net-ativismo”, nem a uma lógica de proselitismo acrítico ligado às agências de marketing. Nesse sentido, a definição de info-ativismo “ecológico” e estético poderá ser mais útil do que a de net-ativismo (Antonio Paulo Carretta). Permite reconhecer o carácter híbrido de todas estas ligações. O seu carácter mais ou menos ciborgue, sublinhando a necessidade de uma ecologia mais abrangente (Gregory Bateson; Deleuze & Guattari; Gilbert Simondon). Destaca-se o papel do “meme” como marca, como ato estético de afetos, que poderá passar para os afetos coletivos (Bento de Espinosa; Gabriel Tarde; Teoria do Contágio). Estamos perante um info(eco)ativismo estético criando novos coletivos, o transpessoal que combina a individualidade com o coletivo (Gilbert Simondon; Paolo Virno). A estética política dos “memes” remete para uma visão ecológica, eco-crítica, uma nostalgia da conexão sagrada entre os seres humanos e o planeta (Ecocritical Studies; Gilbert Simondon). Um novo comum.
O texto baseia-se na análise de memes e em entrevistas aprofundadas, testemunhos de uma forma de ativismo em “multitudes” (Paolo Virno; Tony Negri) que criam lentamente laços de forma rizomática pois escapam em grande parte às instituições tradicionais ligadas às Empresas, Estado ou Religiões. Procurámos essas formas de individuar meta-estáveis em seres humanos concretos mas passíveis de serem vistos como formas aproximadas de um esboço muito simples. Fazer uma cartografia, numa metodologia dos fenómenos emergentes, em que onde são apresentados testemunhos-tipo (ideais tipo como imagens, caricaturas, esboços, como dizia Max Weber), nomeadamente na forma como se lida com o poder de sedução da sociedade do espetáculo, nas suas imagens, palavras e afetos. Veremos os rastros deixados pelos memes na sua longevidade, fecundidade e fidelidade das cópias e traduções. Nesse sentido, as diferentes formas de “memes”, na rede social Facebook, poderão ser perspetivadas como formas de um ativismo centrado na (in)formação eco-crítica. São artistas, músicos dos anos 80, ativistas e cinéfilos, jovens professores ecologistas, docentes ligadas a associações ecologistas que usam o Facebook para divulgar eventos, mulheres escritoras eco-feministas que animam debates nas redes, jovens recém-licenciados que animam coletivos alternativos na área da música e da arte em geral, professores que abandonam a carreira universitária e começam a fazer terapia new age em pequenos grupos nas empresas e associações, etc. No meio desta diversidade de percursos individuais, distinguem-se três formas principais: as individuações centradas nas palavras-imagens-emoções, na aceleração e na heterofobia baseada no medo; as centradas nas palavras e nas máscaras que tendem a voltar-se para o passado e para o instituído, um respeito exagerado que se transforma numa religiosidade de “esquerda”; e as que combinam passado e futuro, emoção com ética, as que se deixam seduzir pelo poder das palavras, das imagens e das figuras tentando criar palavras info-ativas que produzem afetos e criações viradas para a reconstrução do comum. Encontram imagens e palavras que criam um sentido mais autêntico do “comum” de afetos.
Redes de info-ativismo
A visão tradicional, associa a noção de rede a algo formal. Algo que tende para o instituído e o material. Mas podemos pensar de outra forma. Pensar que vivemos imersos em redes de ligações ontológicas de todo o tipo que nos agregam, que nos tentam, em maior ou menor grau, capturar e cristalizar.
Nesse sentido, a noção de ativismo tem como ponto de partida a ideia de “estar ativo” nas redes. Se tivermos em conta que, nos tempos que correm, essas redes são cada vez mais mediadas pela linguagem dos novos media, o ativismo tende a ser, justamente e cada vez mais, um net-ativismo. O presente texto é fruto de uma pesquisa de pós-doutoramento sobre a forma como essas redes de uma espécie de netativismo “informal” se podem agregar ganhando uma dimensão política, podendo ter visibilidade no espaço da cidadania no seu sentido mais amplo que inclui todos os agentes do coletivo mais abrangente.
Partindo dessa noção mais ampla de netativismo, nesses novos comuns mais abrangentes, emerge um info-ativismo que não se reduz nem a um proselitismo acrítico, nem a uma atracão significativa pela tecnologia. Antes pelo contrário: assume o valor contingente desta atracão fatal pelas tecnologias. Esta estranha e perigosa ligação tecnológica. É uma ligação que apenas pode continuar através do afeto, da criação de uma solidariedade em torno do sentimento de otimismo cruel. Um ativismo que é otimista e realista. Um efeito em tempo de mudança acelerada no acesso à informação. Tal como diz um dos entrevistados, no limite, trata-se de criar novas formas de espaço público, de detetar as emergências dessas novas redes de visibilidade, espaços de atenção ainda muito dominados pelos media mainstream.
O ativismo na informação, ou info-ativismo, pode ser entendido como uma divulgação de uma tomada de consciência de que nós todos não somos apenas recetores passivos de uma modelagem da nossa forma decidida por uma minoria abstrata ou maquiavélica. Não se trata de etiquetar numa lógica de compartimentação mas antes em pensar a noção de ativismo em termos de grãos de intensidade na pós-internet que se anuncia. No limite, mesmo o mais isolado dos cidadãos e precisamente por essa situação de isolamento em tempos de comunicação frenética, pode ter um efeito maior em termos de memoria e de afeto, do que um ativista numa frenética luta em constante aceleração pelos “direitos dos mais pobres e excluídos”. Segundo os dados recolhidos pela pesquisa alguns dos quais serão partilhados aqui, não é pela quantidade maior de ações de posts e outras formas de memes que deve ser medida a intensidade in-formacional.
No limite, o eremita criador, pela marca que provoca em outros mais atentos, pode ter um efeito maior do que atividade de milhares numa entrópica atividade. Há casos em que essa discrição permite alumiar indiretamente outras redes emergentes. O que interessa não é a quantidade de palavras ou imagens que informamos nos outros mas a qualidade dessas informações, marcas (palavras e imagens) e afetos. Numa palavra, trata-se de responder à questão: que memórias que deixamos para os outros? A resposta a essa pergunta remete-nos justamente para a importância dos memes.
Memes, netativismo e infoativismo “ecológico” e estético
Ora, todos sabemos pela experiência de vida que a forma como estamos nas redes sociais pode ser visualizada através dos memes que emitimos e com quem interagimos. “Diz-me como estás e com quem estás no Facebook e dir-te-ei quem és”. Continuamente, e de forma acelerada nos últimos tempos, enviamos memes, marcas nas perceções dos outros. Para muitos que se deixam apanhar pela armadilha da popularidade do número, a memória que querem passar é a do otimismo do consenso normalizador, o que conta é o número de likes, o ser popular.
Mas há quem, como ativista virado para dentro, se defina pela lógica do pessimismo e pela recusa da agressividade eufórica. Como diz Juan Carlos Monedero, a propósito da série da TV “Jogo de Tronos”, há os que sentem que o poder deve ser pensado na sua relação com o não-poder, o pacifismo e a não-violência ativa. Segundo Monedero, o poder mais dialogante e poderoso é seu oposto, o poder do agonismo, é a ética do perdedor. Recusa-se o maniqueísmo. Não porque se negue a crueldade cada vez maior de um modo de vida associado à mercantilização como denunciam os agressivos eufóricos mas porque mesmo na situação mais aviltante é possível aprender a perder e, por isso, ser um otimista incurável apesar de tudo
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De facto, esta luta entre os memes pela sua sobrevivência tem uma dimensão política. Numa sociedade tão complexa como a nossa, a questão do “poder” não deve ser limitada um mero jogo de tronos assente em personagens mais ou menos carismáticos. E por outro lado, a questão do político, como defende o politólogo Juan Carlos Monedero, não deve ser vista como algo que suja a objetividade de um cientista social. Na sociedade atual, ela penetra por todos os poros visto que o nosso quotidiano, as pequenas decisões que tomamos todos os dias sobre como ocupar o tempo, vão constituir o cimento em que assentam os grandes coletivos. Tendo como pano do fundo as transformações no trabalho imaterial e a emergência dos novos proletários do século XXI, os precários, há cada mais ativistas na rede que comungam esta perceção eco-crítica ligada a um otimismo cruel.
Esse é conteúdo deste meme generalizado que atravessa muitos dos posts do Facebook escrito em português situados geograficamente principalmente em Portugal e no Brasil. São diferentes formas de “memes”, no Facebook luso-brasileiro, como redes mais ou menos formais de (info-eco)activismo que não se reduzem a uma lógica reduccionista e tecnológica de “netactivismo” agressivo com tendências conspiracionistas, nem a uma lógica de proselitismo acrítico ligado às agências de marketing da religião do mimetismo e do mainstream político.
Nesse sentido, a definição de infoativismo “ecológico” e estético poderá ser mais útil do que a de netativismo
2. Permite reconhecer o carácter híbrido de todas estas ligações. O seu carácter mais ou menos ciborgue, sublinhando a necessidade de uma ecologia mais abrangente (Gregory Bateson; Deleuze & Guattari; Gilbert Simondon). Destaca-se o papel do “meme” como marca, como acto estético de afetos, que poderá passar para os afectos coletivos (Bento de Espinosa, Gabriel Tarde, Teoria do Contágio). Estamos perante um info(eco)ativismo estético criando novos coletivos alargados, o transpessoal que combina a individualidade do local com o colectivo do global (Gilbert Simondon Paolo Virno). A estética política dos “memes” remete para uma visão ecológica, ecocrítica, uma nostalgia da conexão sagrada entre os seres humanos e o planeta. Um novo comum.
Os memes no Facebook
A "rede digital Facebook" é prpriedade de uma empresa privada em que a questão dos memes é vista a partir de uma “economia da atenção”. Aproveitam o potencial de publicidade e marketing que a rede proporciona. Essa empresa, sem pagar um dólar ao seu criador (Tim Berners-Lee voluntariamente rescindiu dos seus direitos) e sem dar a voz da cidadania aos seus utentes que são base dos seus lucros (não há associações nacionais de utentes do Facebook, por exemplo, como há sindicatos ou associações de utentes), utiliza de forma gratuita uma rede das redes, a WEB, que é de algum modo pública.
Olvida-se assim que a rede foi criada como um espaço de cidadania e não um mero instrumento para o lucro empresarial. "Diferente de sistemas anteriores como o HyperCard, a World Wide Web não era software proprietário, tornando possível a criação de outros sistemas e extensões sem a preocupação de licenciamento. Em 30 de abril de 1993, a CERN anunciou que a World Wide Web seria livre para todos, sem custo"
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No entanto, não é essa a conceção do software do Facebook. A forma como o software está organizado é contrária à cidadania, ao verdadeiro sentido do coletivo. Está submetida a uma lógica individualista. Foi retirada a hipótese de um grupo ter uma identidade autónoma da individual como grupo (o oposto do que se passa(va) no Internet Relay Chat). Por outro lado, os algoritmos que comandam o “feed” de notícias têm tendência para criar lógicas de fobia pelo diferente, pelo isolamento em grupos mais ou menos ligados ao parentesco (família, grupo de afinidade corporativa, nacionalismo
4), à profissão ou a ídolos ligados ao consumismo centrados no eu narcísico.
Finalmente, o Facebook aposta cada vez mais nos rendimentos da publicidade que tenta ser obscurecida por uma estratégia de marketing, de “responsabilidade social empresarial” numa defesa do “politicamente correto”
5. Aumentar a sua fatia no mercado de consumidores da economia da “atenção”, é esse o seu objetivo primeiro. Em várias publicações, o Facebook enaltece a importância desta rede no surgimento de movimentos de democratização no mundo. Contudo, adopta medidas que contrariam esta sua afirmação ao criarem dificuldades à emergência de uma consciência ecológica mais profunda. Enquanto que os sistemas abertos como a WEB, Linux e outros como a Wikipédia, se baseiam na cooperação e no software livre, o Facebook sempre se assumiu antes de tudo como um projecto empresarial embora tolere práticas de trabalho cooperativo em áreas onde o seu controlo seria contraproducente. Basta ver que o que alimenta a atividade de dádiva da empresa (criação de acesso grátis ao site, apoio à instalação da rede da internet em África em zonas pobres, etc.) tem a mesma lógica das empresas da indústria da saúde, indústria farmacêutica ou agro-alimentar: alargar o seu mercado, os lucros da sua economia da "atenção". A abertura a campanhas de contágio ligadas a novas formas de expressão da identidade de género, são mais uma cereja em cima do “bolo”. Uma forma de esconder a lógica empresarial que sustenta a empresa e o seu site de software social
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Info(eco)ativismo na rede luso-brasileira do Facebook
A ideia de um novo tipo de ativismo surgiu a partir do estudo de algumas páginas do Facebook luso-brasileiro (o espaço de visibilidade pública criado na rede que partilha a mesma língua) que não se reduzem a uma lógica reducionista e tecnológica de “net-ativismo”, nem a uma lógica de proselitismo acrítico ligado às agências de marketing dos partidos políticos. No fundo, não se identificam com os “neuromarketeiros
7. Por outras palavras, concebe-se uma investigação sobre um “netativismo” sugerindo que o prefixo “Net” que significa “Rede da Internet” seja substituído pelo de “Info”. Não se trata de estudar “apenas” o ativismo que se desenrola na Net”. Ou seja o ativismo que utiliza o suporte “físico” da “Internet”. Trata-se de todo o ativismo que está mais preocupado com o meio do que com o conteúdo. Se por um lado fomos educados para considerarmos mais importante o conteúdo do que a forma, as novas formas de “informar” colocam-nos desafios desarranjando essa perceção tradicional que caracterizava, por exemplo, os primeiros anúncios publicitários: o poder do referencial.
Info-ativismo
A definição de info-ativismo “ecológico” e estético poderá ser mais útil do que a de netativismo. Permite reconhecer o carácter híbrido de todas estas ligações. O seu carácter mais ou menos ciborgue, sublinhando a necessidade de uma ecologia mais abrangente (Gregory Bateson; Deleuze & Guattari; Gilbert Simondon). Destaca-se o papel do “meme” como marca, como acto estético de afetos, que poderá passar para os afectos coletivos (Bento de Espinosa; Gabriel Tarde; Teoria do Contágio). Estamos perante um info(eco)ativismo estético criando novos colectivos, o transpessoal que combina a individualidade com o colectivo (Gilbert Simondon; Paolo Virno)
8. A estética política dos “memes” remete para uma visão ecológica, ecocrítica, uma nostalgia da conexão sagrada entre os seres humanos e o planeta (Ecocritical Studies; Gilbert Simondon). Um novo comum. São apresentados alguns testemunhos desta forma de ativismo em “multitudes” (Paolo Virno; Tony Negri) que se organizam de forma rizomática usando diferentes meios de comunicação digitais e não digitais.
Sugiro que, na linha do pensamento de Gilbert Simondon e Gregory Bateson, que se repense a própria palavra “informação”. Um ativista centrado na informação, no seu sentido mais lato de uma formação que se deixa marcar: uma marca, um “grama”. Um meme.
A noção de "meme" é fundamental para se compreender as mediações em ambiente digital como o Facebook. Todos nós sentimos já a sedução que produzem em nós alguns “memes” através do seu sentido de humor, da inteligência colectiva e ecológica. Milhões deles perdem-se rapidamente no anonimato. Apenas alguns são partilhados de forma mais extensa espalhando-se na rede por contágio como se fossem um vírus biológico. O que é um "meme"? O conceito de “meme”, foi criado por Richard Dawkins, no livro “O Gene Egoísta” (1976). A partir de uma abordagem evolucionista, Dawkins compara a evolução cultural com a evolução genética, onde o meme é o “gene” da cultura, que se perpetua através de seus replicadores, as pessoas. "Um ‘meme de ideia’ pode ser definido como uma entidade capaz de ser transmitida de um cérebro para outro. O meme da teoria de Darwin, portanto, é o fundamento essencial da ideia de que é compartilhado por todos os cérebros que a compreendem"
9. A ideia de que nós os humanos não somos o centro cria uma sensação incómoda. O próprio Darwin, sendo um religioso tradicional, sentiu na pele a angústia da sua descoberta revolucionária que abalava os monoteísmos dominantes.
De algum modo, um meme pode ser considerada a unidade significativa que atua por contágio no meio do fervilhar da rede. Ver. “Esses conceitos salientam a analogia do meme com a da teoria da seleção natural, como elementos capazes de replicação, que estão sujeitos a uma seleção e que podem variar no tempo, características que Dennett (2005) associa à evolução. A partir dessa perspetiva, Dawkins (2001) enumera, como características essenciais do meme, enquanto replicador: a longevidade, a fecundidade e a fidelidade das cópias. A longevidade é a capacidade do meme de permanecer no tempo. A fecundidade é sua capacidade de gerar cópias. Por fim, a fidelidade é a capacidade de gerar cópias com maior semelhança ao meme original.”
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Os "memes" que criamos todos os dias, na rede das redes, devem ser vistos como estruturalmente doentes, passíveis de se perderem na entrpia do mundo das emoções e dos egos. É uma marca que apresenta um defeito essencial: é pensado a partir da teoria cibernética de Shannon. E onde está o problema? É visto como informação unilateral que se deixa capturar pela lógica da informação reduzida à sua performance. Esquecem a etimologia de "grama ou "marca" que é sempre um diferir. Até finais do século XX, o meme da "notícia" era o elemento singular da ecologia dos media social dominado pela imprensa. Nas comunidades pré-modernas, o meme era a fábula, a história contada pelos vizinhos. Uma espécie de diário público feito de narrativas. Das narrativas fundamentais e doutras mais passageiras.
Com as redes digitais, o "post" como meme constitui um dos elementos centrais da ligação.
As palavras, as imagens e os afectos
Para pensar as marcas que deixamos no Facebook é necessário distinguir muito bem o que podemos fazer na rede. Ser info-ativista implica usar três ferramentas de expressão de sentido que estão intimamente articuladas: as palavras, as imagens e os afetos. De algum modo, devemos dizer que toda palavra tem sempre em si uma imagem e um afeto. A linguagem humana distingue-se de outras linguagens pelo seu grau de abstração. As palavras são como um veneno que todos temos de tragar, um veneno que simultaneamente é um remédio contra a perda da memória. A sua desconexão de outras linguagens ligadas ao corpo e às emoções transforma a sua capacidade numa entropia sem fim. A linguagem humana está intimamente associada a uma visão global e gestáltica que apenas poderá ser compreendida através da sua intima ligação com as imagens e os afetos das ligações.
Figuras e imagens
Nos tempos anteriores ao capitalismo, dominados pelo monoteismo religioso, a imagem de Deus era o centro de todas as imagens. Acima de tudo, procurava-se «a salvação». Hoje, pelo contrário, assistimos a uma multiplicação quase infinita de imagens e fotografias que é consequência da dissolução dessa imagem absoluta de Deus, uma autêntica fragmentação. O lado sagrado da imagem unificada fragmentou-se. “É a crise das «imagens», e só depois a das palavras, valores e tudo mais [nomeadamenta as ligações e os afetos]. Toda a incerteza provém da incapacidade de as compreender”
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Ao criar um meme é necessário pensar que não vivemos uma época de imagens unificadas. Há uma fragmentação que assusta. Uma proliferação sem fim. Como se, por cima de textos e pinturas sagrados, alguém tentasse apagar o palimpsesto com desenhos e apagamentos, detalhes. Nesse sentido, o info-activista é o que tem a memória necessária para o que vai fazer. O que, apesar de tudo, descobre uma outra unificação totalitária por detrás da aparente diversificação e fragmentação.
Palavras
O niilismo moderno, nos seus efeitos, “não abalou apenas as grandes palavras, como verdade, deus ou razão. Desprendeu-as das fortes cadeias que as acorrentavam a histórias bem precisas, que as modalizavam, diminuindo a ambiguidade que tudo atinge”
12. As palavras e as imagens tinham uma unidade, ligavam-se a um comum, a uma polis. Nos tempos que correm, o niilismo abalou com essa coerência criando de algum modo vazios que procuram outras narrativas que diminuam a terrível marca de esquecimento que a escrita imprime ao ato da fala. Numa palavra, procura “diminuir a ambiguidade que tudo atinge” sem se deixar capturar pela fragmentação que é mais aparente do que real
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Ligações e afectos
Trata-se de pensar as ligações a partir do corpo, das sensações do corpo até aos seus limites. Um pensamento que permita visualizar a cristalização das ligações que emerge nos conceitos, imagens e figuras. Como diz Bragança de Miranda, “as ligações tendem para a cristalização através de conceitos, imagens e figuras que as ocultam e dissimulam”
14. Considerar o corpo, no sentido da corporidade ontológica e transdisciplinar, como o ponto de partida e de chegada, próximo da noção de afecto em Bento de Espinosa. Nas palavras de um psicólogo, “uma paixão alegre é resultado de uma causa externa, daí a necessidade de encontros com outros corpos. Pode ser o encontro com uma árvore, um bicho, um poema, um trecho de um livro, um filme, um pensamento… alguém. Corpo aqui é tudo que em contato consigo mesmo é capaz de gerar uma afetação. […] Falar em ética das paixões, e especificamente de um cultivo das boas paixões, implica falar de encontros que produzam paixões alegres. Uma boa vida trata-se muito mais de uma seleção de bons encontros do que uma questão de se empanturrar com títulos e mais títulos como costuma nos passar o modelo dominante de vida. É verdade que o saber nos possibilitaria selecionar melhor os encontros, isso em tese, pois por si só o saber não aumenta a potência de um corpo se a relação com este saber é direcionada para uma melhor adaptação em sociedade. E não precisaria dizer o quanto os saberes estão alinhados com a nossa sociedade que é, por excelência, uma máquina de produzir paixões tristes, pois somente entristecendo os corpos é possível manter estruturas de dominação e hierarquia.”
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Nesse sentido, podemos assumir como ponto de partida uma espécie de ecologia que não sendo antropocêntrica, toma consciência do caráter percetivo humanizado do nosso mundo que apresenta características que a diferenciam do resto dos habitantes do planeta
16. A sua capacidade auto-reflexiva. Recusa-se um pensamento desenraizado e cada vez mais distante da imanência do mundo. Mas antes um pensamento que assume o carácter ontológico e sagrado do mundo. Sagrado no sentido de ter uma complexidade que nos leva a uma compaixão generalizada. Uma consciência ecológica profunda.
Os memes do Grumpy Cat
IMAGEM
No estudo de Erick Felinto acerca dos memes do Grumpy Cat, procuram-se as conexões mais subtis, mas não desprezíveis, entre as palavras e as imagens de forma a compreender a sua "qualidade". Não num sentido abstracto de perfeição, mas como formas de "resistência" que se espalham por contágio. O que há de filogenético ou ontogenético nos “memes”.
Abandona-se, de algum modo, a preocupação com a analogia biológica ou cibernética reducionista - uma percepção centrada na informação no seu sentido mais abstracto - para se ver a rede como espaços de (in-in)formação (e não uma racional in-formação). Fazer a cartografia, um mapa que nos dê um oriente de sentido, das “individuações psicossociais” que procuram a sua expressão colectiva. Numa tensão, que nem sempre é perceptível, entre o “mim” e os colectivos de humanos e não-humanos. Como uma mistura entre a nossa componente mais centrada no biológico, a nossa camada/estrato pré-individual e as estratificações que nos leva à cooperação colectiva, ao sentido da casa comum, a noção da individuação do planeta como um todo. Tentar entender, na relação entre texto e imagem, os "memes" que nos fascinam mais, os que nos afetam mais do que outros ao fazer despertar essa percepção/afecto (numa ligação que não é apenas emocional).
Erick Felinto "pretende dissecar os vários estratos simbólicos que compõem a mitologia de Grumpy Cat, de modo a ali encontrar elementos capazes de contribuir para esclarecer o funcionamento dos mecanismos meméticos e dos fenômenos de contágio que continuamente atravessam as redes digitais. Para tanto, tenciono, por um lado, concentrar a análise na relação entre texto e imagem e, por outro, afastar-me das tradicionais interpretações do meme derivadas da exaustivamente explorada analogia entre os domínios biológico e tecnológico"
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Para entender como surge o fenómeno do Grumpy Cat, Felinto fez uma arqueologia da relação entre gatos e internet. Segundo ele, existem explicações científicas para a fixação e imaginário com os gatos. O site 4chan, de compartilhamento de imagens, teve papel fundamental para a difusão da mitologia felina, de acordo com o pesquisador. No entanto, essa fixação surge como algo “fofo”. Todas as imagens de gatos difundidas na web trazem esse teor. “Quando Grumpy Cat surge, ele se coloca no lado oposto dos gatos ‘fofos’. Tensiona sem propriamente negar os valores ligados aos memes da internet (coletividade, humor acrítico, anti-intelectualismo). Suas frases parecem sempre de cansaço, de mau humor, mas também são de dimensão filosófica”.
Erick Felinto propõe uma classificação das imagens de Grumpy Cat, assim definida: metameméticas; citacionais; narrativas; jornalísticas; filosóficas e orientadas ao leitor. Porém, o pesquisador explicou que essa foi apenas uma brincadeira, uma vez que é contra categorizações e a ideia de que elas são suficientes para explicar as coisas.
Felinto explica que o termo “meme” foi traduzido da biologia e da genética para a cultura digital. “Da mesma maneira que o gene se reproduz, meme é um conceito que se traduz na ideia de passar de um meio para outro”. Segundo o pesquisador, o meme faz sucesso quando divulgado por alguém com capital simbólico, mas é mais interessante quando é um acidente. “Falar de meme e Grumpy Cat é falar do ruído. Memes são inesperados. Quem iria esperar que da figura fofa do gato iria sair o Grumpy Cat?”, questionou. Felinto traz duas conclusões que explicam a viralidade. A primeira: o que se reproduz é a própria reprodutibilidade, um desejo de compartilhamento, mas sem objeto definido, sem ser da ordem da representação, mas de ordem afetiva. E a segunda: os acidentes, os ruídos do ambiente digital, constituem o cerne da cultura contemporânea. “Vírus e vermes talvez não sejam anômalos, mas revelariam a ecologia digital específica da nossa vida no ambiente virtual”
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Os memes do Vítor Rua no Facebook
Segundo Vítor Rua, a intuição é fundamental na sua vida. Mas trata-se de uma intuição material se assim se pode dizer, ancorada na consistência das coisas. A figura da ironia e do humor que aproxima e cria afetos. Esta descrição de um ambiente carregado de contágios, de constante sedução cada vez mais ampla numa ética de encontros alegres, de um otimismo cruel está presente nos seus memes.
IMAGEM
“Passos Coelho diz-se preparado para acolher refugiados. Será que que ele se refere aos jovens portugueses que ele mandou emigrar?”
Vejamos um dos seus memes. A imagem do rosto do antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, um pouco mais jovem e agressivo. Há uma imagem do primeiro ministro falando. E um pequeno texto associado. A tríade: imagem, texto e afecto. A imagem remete para um jovem pai agressivo. Um jovem pai ainda. Ver a expressão emocional do rosto de Pedro Passos Coelho. As palavras são sucintas como se estivessem num plano paralelo. Enquanto a imagem remete para uma perceção eco-crítica do poder de um falso Deus, uma imagem que dessacraliza o poder político, as palavras dão expressão a um desejo, algo impossível mas que a nossa parte emocional considera importante.
Neste meio atravessado pela fragmentação tribal, existe uma acção inter-sectorial que atravessa alguns dos “posts” que poderia caracterizar-se por aliar uma face mais criativa e nómada com uma outra reflexiva e metódica. Uma nova forma centrada nas semelhanças e na cooperação. Uma nova forma de estética aceleracionista que parte da street art, criação multimédia e do ativismo eco-libertário e que se expressa por múltiplas experimentações na rede.
Nesse sentido, as diferentes formas de “memes”, na rede social Facebook, poderão ser perspetivadas como formas de um ativismo centrado na (in)formação eco-crítica. São artistas, músicos dos anos 80, ativistas e cinéfilos, jovens professores ecologistas, docentes ligadas a associações ecologistas que usam o Facebook para divulgar eventos, mulheres escritoras eco-feministas que animam debates nas redes, jovens recém-licenciados que animam coletivos alternativos na área da música e da arte em geral, professores que abandonam a carreira universitária e começam a fazer terapia new age em pequenos grupos nas empresas e associações, etc. No meio desta diversidade de percursos individuais, distinguem-se três formas principais.
Em primeiro lugar, encontramos individuações centradas nas palavras-imagens-emoções, na aceleração e na heterofobia baseada no medo. “Há um certo grau de popularidade e de adesão a um certo tipo de mensagem facilitista, sensacionalista, de estética mainstream, popularuça, brejeira, tipificada em estereótipos machistas, racistas e outros istas que dominam um certo imaginário colectivo sobre ideais de entretenimento comuns e de 'interacção fácil'” (entrevista a Ilda Teresa Castro).
Em segundo lugar, uma instrumentalidade que ainda tem a ilusão do poder da palavra, do livresco. Exprime-se através de memes centrados nas palavras e nas máscaras de reputação social que tendem a voltar-se para o passado e para o instituído, um respeito exagerado que se transforma numa religiosidade de “esquerda”. Um info-ativismo ainda iludido pela ideia do referente, do poder do referente no uso das palavras.
Por fim encontrámos os memes que combinam passado e futuro, emoção com ética, as que se deixam seduzir pelo poder das palavras, das imagens e das figuras tentando criar palavras info-ativas que produzem afetos e criações viradas para a reconstrução do comum. Encontram imagens e palavras que criam um sentido mais autêntico do “comum” de afetos. Como diz Ilda Teresa Castro, uma das entrevistadas na pesquisa, “há a vertente do ativismo, do posicionamento em prol de uma mudança de paradigma ecosófico, da utilização da rede como um meio de acção nesse sentido, no sentido que o Bateson e depois Guattari e até Teillard Chardin tinham preconizado, imaginado. E também a vertente de expressão estética-criativa, uma montra para essa apresentação e partilha.” Nestas comunidades ciborgues, ainda “é possivel desenvolver uma comunidade de afetos alternativa a esse mainstream social e que se pode ramificar em conteúdos vários: mais poéticos, mais filosóficos, mais intervencionistas, mais reflexivos, mais estéticos.”
São partilhas que “recebem uma boa adesão/manifestação de afectos em quantidade”. Mas também se pode discernir “um outro espaço também paralelo em que se estima ter poucas manifestações de afectos uma espécie de contra-corrente total. Uma série C dentro do bom gosto, ou como ainda maior bom gosto, ou como bom gosto algo estranho, ou mais personificado ou algo assim. Um bocado, o curtir navegar na estranheza” (entrevista a Ilda Teresa Castro).
Conclusão: memes como imagens, palavras e afectos
Foram apresentados alguns memes na sua tridimensionalidade que dá conta do “viver”, da pulsação de cada um na sua diversidade de expressões. Vai de uma absolutização da palavra e do metafísico, e de uma uma afectividade demasiada apegada às emoções a um deslumbramento das imagens, uma estetização política que passa por uma mudança perceptiva. Os testemunhos dos entrevistados revelam que, em maior ou menor grau, tentam não se deixarem capturar por aquele tipo de meme que, segundo a psicologia analítica de Carl Jung, exagera em demasia numa das nossas dimensões ao individuar. No primeiro, o domínio seria do “pai”, do simbólico, a valorização da palavra escrita e do sério, a cristalização das ligações. Já no segundo, e ainda de acordo com a psicanálise de Jacques Lacan, haveria uma predominância do nosso inconsciente levando-nos a um emocionalidade virada para consumo imediato e para um riso grosseiro ou para a histeria. No terceiro, resultado de um processo muitas vezes doloroso, emerge uma outra perceção-afecto em lugar duma domesticação do olhar-corpo e de um descontrolo neurótico do corpo. Emerge uma descaptura que, sem entrar num buraco negro, através de uma contra-efectuação, se transforma numa captura e sedução pela imagem-nua mais próxima do corpo e da ligação sem mediações. Há justamente uma conversão do olhar, uma tendência estética em que o humor, o desprendimento é fundamental. Uma estética criativa baseada no princípio do insight, a intuição. Uma espécie de otimismo que não esquece a cegueira dominante. Resiste à intoxicação voluntária.
Fazendo uma síntese final, poderemos distinguir três formas principais de memes no Facebook: os memes centrados nas palavras-imagens-emoções, na aceleração e na heterofobia baseada no medo; os que se deixam seduzir pelo poder referencial das palavras que tendem a voltar-se para o passado e para o instituído, um respeito exagerado que se transforma numa religiosidade de “esquerda” e de “direita”; e as que combinam passado e futuro, emoção com ética e humor, as que tentam criar palavras e imagens info-ativas que produzem afetos e criações viradas para a reconstrução do comum.
1Esteban Hernández, “Monedero discute con Pablo Iglesias acerca de 'Juego de tronos'”, in
4Um pouco na linha do que dizia António de Oliveira Salazar, há muitas dezenas de anos atrás, interessa, para um pensamento totalitário, desenvolver de forma religiosa as corporações, as agregações que diluam o conflito, a discussão, a criação de autênticos “Ágoras” (Ver Moisés de Lemos Martins, O olho de Deus no discurso salazarista, Porto, Ed. Afrontamento, 1987).
5Ver a campanha com as cores do arco-íris sobre a legalização do casamento gay nos EUA. Ver também o seu apoio a projectos de expansão do acesso à internet em países do terceiro mundo (o caso da Internet livre na Índia).
6Os responsáveis do Facebook disponibilizam o conteúdo e frequência desses memes sem identificação pessoal para investigações em áreas do marketing, ciências sociais, economia, etc. Milhares de papers em reuniões da tecnociência apresentam resultados baseados em dados quantitativos sobre esses memes dando origem a análises centradas na medida quantificada, transformada em números, no primado da medida e não da compreensão do fenómeno. Feitos à medida dos principais clientes, as grandes corporações.
7“A relação entre indústria, capitalismo e marketing [...]. Mostrando um comercial da marca de comida para gatos Friskies, ele afirmou que os memes da internet são apropriados pelo que chama de “neuromarketeiros”, pessoas que tentam reproduzir o efeito viral dos memes através de técnicas artificiais. Contudo, não se trata de uma imagem apenas, mas de uma sensação. “Esses neuromarketeiros não estão preocupados com o sentido, mas com os afetos criados pelas técnicas de marketing. O neuromarketing trabalha com a materialidade dos sentidos. Passaram da fase do significado para a dimensão do corpo. Não é caracterizado por uma racionalidade”, disse.”
11José Bragança de Miranda, Envios. Uma Experimentação Filosófica na Internet, Lisboa, Nova Vega, 2008, 154.
16Utiliza-se o termo “ecologia” no seu sentido aparentemente literal de “logos da terra-oikos”. Significa uma ecologia inspirada principalmente em Gilles Deleuze, Félix Guattari e Gilbert Simondon.
18 Camila Shafer,“Erick Felinto, Grumpy Cat e a lógica dos memes”, 22 de Maio de 2013. in
http://tecnoculturaaudiovisual.com.br/?p=13142. Acedido em 7 de julho de 2014.
Pós-doutorando no Centro de Estudos Comunicação e Linguagens. Bolsa de Pós-Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia SFRH/BPD/42559/2007, financiada por fundos nacionais do MEC.