12/10/14

Alberto Caeiro e as coisas - ou as “cousas”…









Alberto Caeiro e as coisas - ou as “cousas”…


"O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum."
Alberto Caeiro


1. Um breve apontamento. “O luar quando bate na relva / Não sei que cousas me lembra … / Lembra-me a voz da criada velha / Contando-me contos de fadas […] Se eu já não posso crer que isso é verdade, / Para que bate o luar na relva?” (Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos (GR), Poema XIX). Como se “O luar quando bate na relva” fosse para qualquer coisa, para qualquer significado. Por outras palavras, como se o luar, quando batesse na relva, fosse para ‘eu’ (Caeiro, na dessubjectivação heteronímica do mestre) crer em contos de fadas. Por outro lado, o bater o luar na relva é só isso enquanto tal: “Não sei que cousas me lembra ….” Todavia, nem sequer é preciso bater o luar na relva (“Para que bate o luar na relva?”), pois não é preciso para nada. Desconstrói-se de um certo modo a linguagem; ou melhor, des-faz-se a frase “O luar quando bate na relva”, reentrando num outro regime de sentido. 
2. “Porque tudo é como é e assim é que é, / E eu aceito, e nem agradeço, / Para não parecer[1] que penso nisso…” (GR, Poema XXIII).
Mas como é que se chegou aqui? Caeiro opera um trabalho em que des-faz, de um certo modo, a linguagem no seu dizer (poético; e mesmo em verso: “Por mim, escrevo a prosa dos meus versos” (GR, Poema XXVII), ao ponto de a re-fazer mantendo o leitor num duplo plano: o do modo em que se desfez o dizer e aquele em que se refez esse dizer, inscrevendo ainda um outro plano (‘3º’), ou grau, como tentaremos mostrar adiante. 

3. O que faz o poeta no poema XXIII, antes de chegar aos três versos finais (“Porque tudo é como é e assim é que é, / E eu aceito, e nem agradeço, / Para não parecer que penso nisso…”)? 

Primeiro, como que refaz: 

1.º
“O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...
” (sublinhado nosso)


Depois desfaz: 

“(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol..
.” (sublinhado nosso)


Em seguida, refaz e desfaz, e vice-versa:

Desfaz e refaz, mas já de outro modo. Um modo não alcançável somente pela linguagem, dita verbal, nem pelo pensamento; mas agora, também, pela experiência sensacionista da constatação activa do que é, enquanto tal, das coisas, ou das “cousas”: 

Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...
) ” (sublinhado nosso)


Mas, a bem dizer, esta não se trata propriamente de uma terceira instância, grau ou plano (3º). Ou, a sê-lo, remete para um 4º plano. Sendo que estes (3º e 4º) são o desdobramento e deslocamento em aberto dos dois primeiros. Esta abertura faz com que não se detecte em qual destes dois primeiros planos (1º refazer; 2º desfazer) o nosso registo de leitura se move no momento em que se lê e vivencia a experiência poética sensacionista e das “cousas”. Dá-se, pois, como que uma libertação da linguagem num duplo sentido. 1º: o de uma linguagem que se liberta; 2º: o de uma libertação relativamente à linguagem. Por exemplo: “Porque há homens que não percebem a sua linguagem [a da “Natureza”]. / Por ela não ser linguagem nenhuma…” (GR, Poema XXXI).

Luís Tavares

Referências bibliográficas:
Fernando Pessoa, Poesia de Alberto Caeiro, Organização de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2009.



[1] Nota dos organizadores da edição citada: “Vars. a “parecer”; “saber” / “perceber”.


Imagem: Pintura de Luís de Barreiros Tavares

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