11/09/13

A propósito do "narcisismo" no facebook: notas avulsas sobre a "fase do espelho" referida pelo psicanalista Jacques Lacan



“O homem e a mulher são, do ponto de vista corporal, fetos de primata
 que atingiram [prematuramente] a maturidade sexual” (Bolk, 1960).
É necessário dizer claramente que, ao contrário do discurso dos psicólogos da normalidade, o "narcisismo" não é um desvio ou uma doença. É a característica essencial da sociedade ocidental em que vivemos. Um vírus que tende a aumentar exponencialmente com as redes digitais, com a aceleração do fascínio pelas imagens e, finalmente, com a alucinação "normalizada" que corre nas redes sociais, nos jogos e no sexo digital.
Para se perceber a noção de "narcisismo" referida em posts anteriores, irei recorrer ao psicanalista Jacques Lacan.
Antes, alguns comentários rizomáticos. Acerca do homem como um ser epifilogeneticamente alienado, um ser que tende a viver imenso tempo na "fase do espelho". Uma tendência hipervalorizada no Facebook. 


De acordo com o psicanalista Jacques Lacan, somos seres em angústia, todos potencialmente neuróticos, pela nossa ligação demasiado intensa e longa, mimética com a mãe enquanto bébés. Somos, na verdade, o animal que passa mais tempo nesse estado de total falta de autonomia depois de nascer. De algum modo, o homo sapiens é cientificamente um "nascido"  antes do tempo, um "aborto". Mais tarde, ficamos naturalmente marcados para toda a vida. Dependendo da nossa liberdade e da forma como somos "educados" ou "libertados", podemos seguir sendo egocêntricos num eu-espelho, num narcisismo que a sociedade de consumo incentiva todos os dias. Podemos todos os dias viver na euforia do espelho, numa traição ao eu-profundo (ver livro de Arno Gruen: A traição do eu). Esse narcisismo é o campo onde pode nascer a semente da crueldade psicopata. Ou então, se tivermos sorte, podemos "dar a volta", muitas vezes por caminhos pouco luminosos, encontrando pouco a pouco o nosso eu autêntico, um eu descentrado, pré-individual, como defende algures o filósofo Gilbert Simondon e o psicanalista Carl GustavJung. Mas isso é outra história...

Mas ao contrário, por exemplo de outros animais como o cão, com uma outra percepção visual [menos concentrada na "fovea", no centro da retina] e um uso mais amplo dos sentidos nomeadamente o olfacto, o homem tem um olhar dirigido, analítico, pouco holístico (ver o Manifesto Cyborgue da bióloga e pós-feminista Donna Haraway). O homem está centrado na percepção visual da fovea (necessária para o homem primitivo ter acuidade visual na caça) tendendo por isso, na sociedade actual, a ficar dependente do espelho e das percepções visuais "focadas". Por isso, a insistência doentia nas imagens, no sexo por imagens, na apresentação da nossa "face", na rostridade através, por exemplo, das fotos pessoais no "Facebook".

Este eu-ego, criado no mimetismo da infância na relação com a mãe, é uma "instância de desconhecimento, de ilusão, de alienação, sede do narcisismo. É o momento do Estádio do Espelho". Um 'Eu' criado pelo nosso Imaginário, "juntamente com fenómenos como o amor, o ódio, a agressividade" (ver "Jacques Lacan", In Wikipedia). São fases imaturas, de máscara mas que podem durar infelizmente toda a vida.

A sociedade do "trabalho-mercadoria" faz todo o possível para que assim seja. Infelizmente, para mal do planeta e das nossa vidas, a maioria dos que nos governam, principalmente os gestores das grandes corporações multinacionais, são no fundo crianças egocêntricas com tendência psicopatas (ver livro do conhecido psicólogo Arno Gruen, "A loucura da normalidade").

Vejamos então o texto de Léa Silveira Sales.

“O homem é, do ponto de vista corporal, um feto de primata que atingiu a maturidade sexual”. 

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Segundo Lacan (1966, p. 96) há  “[...) Lacan confere o estatuto de “Discórdia primordial [do homem]”; o fato de nascer prematuro – com o mal-estar e a falta de coordenação motora que isso acarreta – não permite ao homem o estabelecimento de relações fisiológicas suficientes com o meio e é essa lacuna que a imagem possui a função de preencher [nomeadamente a importância do olhar da mãe que o apaixonado, um estado de 'pathos', retoma no olhar do amado ou amada]; é ela que passa a mediar a relação do homem com o mundo.


O estágio do espelho constitui, justamente, um dos modos dessa relação: “A função do estágio do espelho revela-se [...] como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade [...]” (Lacan, 1966, p. 96).

Lacan compara o recurso à imago no ser humano ao fenômeno da deiscência (abertura das sementes) na botânica; Bowie (1991, p. 29) esclarece a analogia: “[...] a auto-alienação do sujeito é tão ‘natural’, tão inevitável, quanto a auto-propagação das plantas.”
Segundo Ogilvie (1991), o homem é finalmente definido como um ser inacabado a partir de 1926 com os trabalhos de Bolk que apoiavam essa definição em dois fatores: a neotenia – grande demora no desenvolvimento com relação às outras espécies – e a 
fetalização – existência de traços anatômicos arcaicos: características que, nas outras espécies, pertencem apenas ao estágio fetal permanecem presentes no homem durante toda a sua vida; nas palavras de Bolk (1960 apud Ogilvie, 1991, p. 115): “O homem é, do ponto de vista corporal, um feto de primata que atingiu a maturidade sexual”. 

Para Lacan (1966, p. 186), é preciso, então, que a imagem venha suprir, no homem, as deficiências causadas pela neotenia e pela fetalização

“É em função desse atraso do desenvolvimento que a maturação precoce da percepção visual adquire seu valor de antecipação funcional”. 

Léa Silveira Sales, "Posição do estágio do espelho na teoria lacaniana do imaginário" 

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